A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato – Jessé Souza

a elite

Jessé Souza escreveu um livro que visa explicar de forma bem didática e acessível o Brasil que temos hoje. Para isso, discorda de alguns dos mais cultuados intérpretes do país, como Sérgio Buarque e Raimundo Faoro. Souza acerta a mão e realiza uma obra curta e altamente instrutiva, que possibilita ao leitor repensar muitas de suas certezas construídas na escola, na universidade e ao assistir à TV.

Ao longo de diversas semanas venho postando alguns trechos interessantes da obra, os quais podem ser lidos aqui, mas estes são só exemplos. A leitura é muito recomendada  por si só e ainda mais neste importante ano de eleições.

Mas o aspecto econômico do conluio entre a Globo e a Lava Jato também é estarrecedor. Uma empresa venal e politicamente radicalizada, agindo sob os auspícios de uma concessão pública, se junta com servidores públicos cegos por interesses corporativos, para promover a pior recessão econômica com milhões de desempregados frutos de sua ação direta. Pior ainda. Destroçando anos de trabalho em direção a uma inserção econômica internacional mais autônoma do país e menos dependente.

Não vamos ser ingênuos. O início da Lava Jato foi a perspectiva de se acabar com o sonho dos BRICS e dos brasileiros que aspiram a um país próspero para a maioria. Os americanos são os defensores de um status quo mundial onde o Brasil e a América Latina só entram como fornecedores de matéria-prima, sem acesso a progresso industrial e tecnologia de ponta. A tecnologia para a usina de Volta Redonda, por exemplo, antes sempre recusada pelos EUA, teve que ser conseguida como contrapartida da entrada do Brasil na Segunda Guerra.

O Brasil deveria e deve subsistir, para os americanos, como quintal empobrecido e mercando interno colonizado. O pré-sal e a Petrobras eram a carta na manga do país para um inserção internacional menos dependente. Com um esquema de espionagem com acesso a todos os e-mails e a comunicação virtual de todo o mundo, como ficou provado nos escândalos envolvendo aliados como a Alemanha e a escuta da comunicação pessoal da primeira ministra Angela Merkel, só bastava a CIA municiar os inimigos do PT para dar início à operação desmonte. Afinal, se existe uma coisa que não muda na América Latina é que os EUA estão por trás de todos os golpes de Estado.

(…)

Com o cidadão feito de completo imbecil, é fácil convencê-lo de que a Petrobras, como antro da corrupção dos tolos, só dos políticos, tem que ser vendida aos estrangeiros honestos e incorruptíveis que nossa inteligência vira-lata criou e nossa mídia repete em pílulas todos os dias. Com base  na corrupção dos tolos,  cria-se, na sociedade imbecilizada por uma mídia venal que distorce a realidade para vendê-la com maior lucro próprio, as precondições para a corrupção real, a venda do país e de suas riquezas a preço vil. Esse é o resultado real e palpável do conluio entre grande imprensa, com a Rede Globo à frente, e a Lava Jato, é melhor entregar de vez a Petrobras, a base de toda uma matriz econômica autônoma, aos estrangeiros honestos e bem-intencionados. O quanto se levou nessa tramoia só saberemos, como sempre, quando for muito tarde, tanto para os culpados quanto para as centenas de milhões de vidas empobrecidas e desempregadas.

Jessé Souza em “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”

O Brasil tem mais assassinatos – de pobres – que qualquer outro país do mundo. São 60 mil pobres assassinados por ano no Brasil. Existe uma guerra de classes hoje declarada e aberta. Construiu-se toda uma percepção negativa dos escravos e dos seus descendentes como feios, fedorentos, incapazes, perigosos e preguiçosos, isso tudo sob forma irônica, povoando o cotidiano com ditos e piadas preconceituosas, e hoje muitos se comprazem em ver a profecia realizada.

Jessé Souza em “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”

Não basta construir a universidade mais importante e de mais prestígio, como a elite paulistana criou a USP e as teses do patrimonialismo e populismo. É necessário ter os jornais também nas mãos da elite para reverberar as teorias falsamento críticas para o público indefeso. É preciso ter as editoras de maior nome e influência e o acesso aos financiamentos de pesquisa, aos prêmios, honrarias e mecanismos de consagração intelectual. Assim, é possível usar a posição de proprietária dos meios de produção material para se apropriar dos meios simbólicos de produção e reprodução da sociedade. É aqui que entra o contexto que existe até hoje entre imprensa, universidade, editoras, premiações e honrarias e capital econômico. Como o dinheiro não pode aparecer comprando o diretamente os valores que guiam as esferas da cultura, do conhecimento e da informação, essas esferas precisam construir mecanismos de consagração internos a ela como se fossem infensos à autoridade do dinheiro e do poder.

Jessé Souza em “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”

A esmagadora maioria dos produtos da indústria cultural e da mídia não se dirige ao conhecimento, que transforma e emancipa o sujeito, mas sim ao reconhecimento de estereótipos, clichês e chavões, que reproduzem o mundo e os interesses que estão ganhando. O clichê político dos jornalões e da TV brasileira, em época recente, de chamar de “chavismo” e “bolivarianismo” qualquer crítica a si mesmo ajuda em que a reflexão? As novelas, filmes de grande bilheteria, livros de autoajuda e best-sellers que repetem as mesmas fórmulas gastas e repetitivas de provocar seu público ajudam em que a reflexão verdadeira?

Jessé Souza em “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”

Mas a chave para a compreensão da iniquidade e vileza singulares da sociedade brasileira é a classe média. É ela que forma um pacto antipopular comandado pela elite dos proprietários, onde se misturam aspectos racionais, como preservação de privilégios, e aspectos irracionais, como necessidades de distinção e ódio e ressentimento de classe. É esse mecanismo essencial, construído de modo consciente e planejado pelas elites a partir da década de 1930, que explica a recorrente vitória do pacto de classes antipopular do último século.

 

Jessé Souza em “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”

A escravidão dificultava a formação de famílias negras e combatia qualquer forma de independência e autonomia do escravo. Não é por acaso, portanto, que nossos pobres tenham famílias monoparentais e tenham dificuldades de desenvolver um padrão que reproduza a contento os papéis de filho, pai e irmão de toda família da classe média. A enorme estigmatização do preconceito escravocrata, que no nosso caso foi amplo e contava com o apoio de todas as classes acima dos abandonados, tende a se introjetar na própria vítima. Aos escravos e seus descendentes foi deixado o achaque, o deboche cotidiano, a piada suja, a provocação tolerada e incentivada por todos, as agressões e até os assassinatos impunes.

Jessé Souza em “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”

O ódio ao pobre hoje em dia é a continuação do ódio devotado ao escravo de antes. Quando as classes médias indignadas saíram às ruas a partir de junho de 2013, não foi, certamente, pela corrupção do PT, já que os revoltados ficaram em casa quando a corrupção dos outros partidos veio à tona. Por que a corrupção do PT provocou tanto ódio e a corrupção de outros partidos é encarada com tanta naturalidade? É que o ódio ao PT, na realidade, foi o ódio devotado ao único partido que diminuiu as distâncias sociais entre as classes no Brasil moderno. A corrupção foi mero pretexto. Não houve, portanto, nos últimos 150 anos, um efetivo aprendizado social e moral em direção a uma sociedade inclusiva entre nós.

Jessé Souza em “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”